Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin (1991, p.251):
"É de grande a importância da aplicação do CDC aos contratos de
locação em virtude de sua relevância social e de extrema vulnerabilidade
fática, que se encontra o indivíduo ao necessitar alugar um imóvel para sua
moradia e de sua família, tal vulnerabilidade aliada a um mercado de oferta
escassa, parece incentivar práticas abusivas, na contratação (cobrança de taxas
abusivas, por ex.) e na elaboração unilateral dos contratos; o fenômeno é
mundial."
APLICAÇÃO DO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO URBANA - REGIDOS PELA LEI Nº
8.245/1991
Leia mais:Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que... utiliza produto... como destinatário final". Na locação residencial, sem a menor dúvida, o locatário é destinatário final. Por isso, consumidor.
Na relação ex locato, o locatário,
através do imóvel recebido em locação, satisfaz uma necessidade sua e/ou de sua
família, que é a necessidade de um teto ou de moradia. Seja na locação
residencial comum, seja na locação residencial com sublocação parcial, o
locatário se configura como destinatário final. Estamos, por isso, sem a menor
dúvida, diante de uma situação adequável à de consumidor. Presente esta situação
de consumidor relativamente à atividade prestada pelo fornecedor, se estará
diante de uma relação jurídica de consumo. Toda vez que o locatário transfere,
mediante remuneração periódica, como direito pessoal, o uso e o gozo da coisa,
estamos diante de um contrato de locação (art. 118 do Código Civil).
Objetivamente, locação é cessão de uso, ou utilização da coisa e, no caso, de
imóvel. No CDC, são atos de consumo, como se lê no artigo 2º, o ato de
aquisição - transferência de domínio - e o ato de utilização - cessão de uso,
do jus utendi. É acaciano que ato de utilizar-se representa, com outros
requisitos, a locação, e o ato de utilização é ato de consumo.
O CDC é norma que complementa a
Constituição Federal. O comando inicial da lei protetiva do consumo localiza-se
no texto constitucional.
O
artigo 5º, XXXII, da CF regra que "o Estado promoverá, na forma da lei, a
defesa do consumidor". Qualquer lei
ordinária que pense em revogar a Lei nº 8.078/90, excluindo a proteção do
consumidor do mundo jurídico, é lei ineficaz, visto ser ofensiva à norma
constitucional supra. A doutrina especializada em legislação de consumo apóia este
entendimento. ARRUDA ALVIM e outros (Código do Consumidor Comentado, p. 74,
Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1995) assim argumentam: "Doutra parte, a lei federal posterior ao
advento deste Código, que em função de encontrar-se em um mesmo nível
hierárquico, poderia revogar as disposições desta lei, somente terá validade se
constitucional, ou seja, se respeitar os mandamentos constitucionais de defesa
do consumidor, visto consagrar a Constituição a defesa do consumidor entre os
direitos e deveres individuais e coletivos..."
O artigo 5º, XXXII, da CF, raiz do Código de
Defesa do Consumidor, está localizado na área das garantias constitucionais,
como direito e garantia individual. Isto
permite sua categorização como cláusula pétrea. Compreende-se-a como aquele
tema constitucional que, tendo configuração de estabilidade e perenidade, não pode ser derrogado pelo ordenamento
jurídico vigente. Assim, nem emenda
constitucional pode aboli-la, ou iniciar processo de abolição. É a regra do
artigo 60, § 4º, da CF: "Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais". A
vedação é por demais evidente.
Assim, na hipótese, a norma
constitucional foi preenchida em 11 de março de 1991, passando a tratar os
locatários como consumidores, se destinatários finais. A garantia constitucional de proteção do consumidor (locatário)
tornou-se efetiva desde a data referida e significava direito e garantia
individual que nem emenda constitucional poderia alterar, porque a abrangência
se estruturava como cláusula pétrea. Após, em outubro de 1991, é editada a
Lei nº 8.245, a Lei de Locação. Lei hierarquicamente no nível de ordinária,
formal e substancialmente, que alguns sustentam ter o efeito e a eficácia de
afastar o CDC da incidência sobre relações ex locato urbanas. Seria, por toda
exposição até agora feita, possível?
A
ineficácia da lei ordinária para abolir a garantia dos locatários já posta no
ordenamento jurídico, sublimada por sua petrificação, é por demais evidente. Além de vulnerar texto constitucional, tem
a pretensão de abolir cláusula pétrea. A
Lei de Locação invadiu competência alheia e dispôs substancialmente com ofensa
a texto constitucional. Entre
as duas soluções, não se pode priorizar a infraconstitucional, relegando a
segundo plano a constitucional. Pelo menos, no
tradicional ordenamento jurídico brasileiro. A locação de produto, portanto, se
insere como ato de comercialização. E é o que importa. Desse modo, não se pode
excluir o locador, mesmo o urbano, de ser fornecedor, porque pratica a
comercialização.
Poder-se-ia
entender o locatário como consumidor? Sem dúvida, o locatário não adquire a
propriedade de imóvel e, neste sentido, não se pode adequá-lo ao adquire...
produto do artigo 2º do CDC. O que o locatário recebe no contrato de locação de
imóvel? O conceito dado pelo artigo 1.188 do Código Civil é claro: "Na
locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder a outra, por tempo
determinado, ou não, o uso e gozo da coisa não fungível mediante certa
contribuição". No mesmo sentido, era o que se lia no artigo 18, I e
II, da Lei nº 6.649/79, anterior Lei do Inquilinato, e o que se lê no
artigo 22, I e II, da Lei nº 8.245/91, a atual Lei de Locações.
PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito
Privado, tomo XL, § 4352, Editor Borsoi, 3ª edição, 1972) é preciso: "No
direito relativo aos bens imóveis e aos móveis, tem-se de atender a que o uso
da coisa é pelo titular do direito de propriedade, que é, na maior parte dos
casos, quem tem o usus, porém nem sempre o tem (tem-no, e.g., o usuário), ou é
pelo titular, não-proprietário, do usus, ou por alguém a quem o titular do
poder de uso locou a coisa". Mais adiante, afirma: "O locador não promete direito real; promete
entregar e garantir o uso; uso, aí, é direito obrigacional de
usar...".
Na locação,
portanto, há transmissão, do locador para o locatário, do usus, ou uso, ou,
ainda, do direito de usar, ou jus utenti do direito romano. Esta
compreensão é perfeitamente adequável ao
artigo 2º do CDC, quando diz que "consumidor
é toda pessoa física ou jurídica que... utiliza produto... como destinatário
final". Na locação residencial,
sem a menor dúvida, o locatário é destinatário final. Por isso, consumidor.
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento
Des. do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Presidente da 1ª Câmara Cível
(Publicado na Revista Jurídica nº 263, p. 78)
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