terça-feira, 30 de setembro de 2014

CDC como Cláusula Pétrea não pode ser suplantado pela Lei do Inquilinato


Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin (1991, p.251):

"É de grande a importância da aplicação do CDC aos contratos de locação em virtude de sua relevância social e de extrema vulnerabilidade fática, que se encontra o indivíduo ao necessitar alugar um imóvel para sua moradia e de sua família, tal vulnerabilidade aliada a um mercado de oferta escassa, parece incentivar práticas abusivas, na contratação (cobrança de taxas abusivas, por ex.) e na elaboração unilateral dos contratos; o fenômeno é mundial."


APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO URBANA - REGIDOS PELA LEI Nº 8.245/1991
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Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que... utiliza produto... como destinatário final". Na locação residencial, sem a menor dúvida, o locatário é destinatário final. Por isso, consumidor.
 
Na relação ex locato, o locatário, através do imóvel recebido em locação, satisfaz uma necessidade sua e/ou de sua família, que é a necessidade de um teto ou de moradia. Seja na locação residencial comum, seja na locação residencial com sublocação parcial, o locatário se configura como destinatário final. Estamos, por isso, sem a menor dúvida, diante de uma situação adequável à de consumidor. Presente esta situação de consumidor relativamente à atividade prestada pelo fornecedor, se estará diante de uma relação jurídica de consumo. Toda vez que o locatário transfere, mediante remuneração periódica, como direito pessoal, o uso e o gozo da coisa, estamos diante de um contrato de locação (art. 118 do Código Civil). Objetivamente, locação é cessão de uso, ou utilização da coisa e, no caso, de imóvel. No CDC, são atos de consumo, como se lê no artigo 2º, o ato de aquisição - transferência de domínio - e o ato de utilização - cessão de uso, do jus utendi. É acaciano que ato de utilizar-se representa, com outros requisitos, a locação, e o ato de utilização é ato de consumo. 

O CDC é norma que complementa a Constituição Federal. O comando inicial da lei protetiva do consumo localiza-se no texto constitucional. O artigo 5º, XXXII, da CF regra que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Qualquer lei ordinária que pense em revogar a Lei nº 8.078/90, excluindo a proteção do consumidor do mundo jurídico, é lei ineficaz, visto ser ofensiva à norma constitucional supra. A doutrina especializada em legislação de consumo apóia este entendimento. ARRUDA ALVIM e outros (Código do Consumidor Comentado, p. 74, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1995) assim argumentam: "Doutra parte, a lei federal posterior ao advento deste Código, que em função de encontrar-se em um mesmo nível hierárquico, poderia revogar as disposições desta lei, somente terá validade se constitucional, ou seja, se respeitar os mandamentos constitucionais de defesa do consumidor, visto consagrar a Constituição a defesa do consumidor entre os direitos e deveres individuais e coletivos..." 

O artigo 5º, XXXII, da CF, raiz do Código de Defesa do Consumidor, está localizado na área das garantias constitucionais, como direito e garantia individual. Isto permite sua categorização como cláusula pétrea. Compreende-se-a como aquele tema constitucional que, tendo configuração de estabilidade e perenidade, não pode ser derrogado pelo ordenamento jurídico vigente. Assim, nem emenda constitucional pode aboli-la, ou iniciar processo de abolição. É a regra do artigo 60, § 4º, da CF: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais". A vedação é por demais evidente.

Assim, na hipótese, a norma constitucional foi preenchida em 11 de março de 1991, passando a tratar os locatários como consumidores, se destinatários finais. A garantia constitucional de proteção do consumidor (locatário) tornou-se efetiva desde a data referida e significava direito e garantia individual que nem emenda constitucional poderia alterar, porque a abrangência se estruturava como cláusula pétrea. Após, em outubro de 1991, é editada a Lei nº 8.245, a Lei de Locação. Lei hierarquicamente no nível de ordinária, formal e substancialmente, que alguns sustentam ter o efeito e a eficácia de afastar o CDC da incidência sobre relações ex locato urbanas. Seria, por toda exposição até agora feita, possível?

A ineficácia da lei ordinária para abolir a garantia dos locatários já posta no ordenamento jurídico, sublimada por sua petrificação, é por demais evidente. Além de vulnerar texto constitucional, tem a pretensão de abolir cláusula pétrea. A Lei de Locação invadiu competência alheia e dispôs substancialmente com ofensa a texto constitucional. Entre as duas soluções, não se pode priorizar a infraconstitucional, relegando a segundo plano a constitucional. Pelo menos, no tradicional ordenamento jurídico brasileiro. A locação de produto, portanto, se insere como ato de comercialização. E é o que importa. Desse modo, não se pode excluir o locador, mesmo o urbano, de ser fornecedor, porque pratica a comercialização.

Poder-se-ia entender o locatário como consumidor? Sem dúvida, o locatário não adquire a propriedade de imóvel e, neste sentido, não se pode adequá-lo ao adquire... produto do artigo 2º do CDC. O que o locatário recebe no contrato de locação de imóvel? O conceito dado pelo artigo 1.188 do Código Civil é claro: "Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder a outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo da coisa não fungível mediante certa contribuição". No mesmo sentido, era o que se lia no artigo 18, I e II,  da Lei nº 6.649/79, anterior Lei do Inquilinato, e o que se lê no artigo 22, I e II, da Lei nº 8.245/91, a atual Lei de Locações. 

PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado, tomo XL, § 4352, Editor Borsoi, 3ª edição, 1972) é preciso: "No direito relativo aos bens imóveis e aos móveis, tem-se de atender a que o uso da coisa é pelo titular do direito de propriedade, que é, na maior parte dos casos, quem tem o usus, porém nem sempre o tem (tem-no, e.g., o usuário), ou é pelo titular, não-proprietário, do usus, ou por alguém a quem o titular do poder de uso locou a coisa". Mais adiante, afirma: "O locador não promete direito real; promete entregar e  garantir o uso; uso, aí, é direito obrigacional de usar...".

Na locação, portanto, há transmissão, do locador para o locatário, do usus, ou uso, ou, ainda, do direito de usar, ou jus utenti do direito romano. Esta compreensão é perfeitamente adequável ao artigo 2º do CDC, quando diz que "consumidor é toda pessoa física ou jurídica que... utiliza produto... como destinatário final". Na locação residencial, sem a menor dúvida, o locatário é destinatário final. Por isso, consumidor.

Tupinambá Miguel Castro do Nascimento

Des. do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Presidente da 1ª Câmara Cível

(Publicado na Revista Jurídica nº 263, p. 78)

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